Ayla Gabriela já estava praticamente escalada para Geni e o Zepelim. Mas, assim como nos filmes, uma reviravolta fez com que ela deixasse um papel secundário para viver a protagonista do longa dirigido e roteirizado por Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?) e baseado na canção de 1978 de Chico Buarque. O convite veio após críticas que fizeram a produção redesenhar o projeto para colocar uma travesti no papel principal. A atriz de 28 anos viverá pela primeira vez uma protagonista de um longa-metragem no cinema, um marco não apenas em sua carreira, mas também para a representatividade de corpos trans nas telas brasileiras.
“O filme já tinha uma personagem trans, que era a Tereza, e a gente fez alguns testes, e um deles foi com a Ayla. Quando deu a crise, eu liguei para o Gabriel [Gabriel Domingues, produtor de elenco] e falei: ‘Entre as atrizes que fizeram o teste para outra personagem, encontra uma, me traz a melhor, eu não quero duas, me traz uma’. E ele trouxe a Ayla”, revela ao Estadão a diretora Anna Muylaert sobre a escolha da nova protagonista.
“Foi tudo muito rápido”, relembra Ayla na mesma conversa. “Eu fiz o primeiro teste em outubro ou novembro de 2024, e, quando rolou tudo [a polêmica que levou à mudança, em abril deste ano], foi bem rápido. Lembro que pensei: ‘poxa, bem que podia ser eu’. Dez minutos depois, meu agente me ligou, meio desesperado, dizendo que eles queriam me retestar.” Entre a surpresa e o desejo contido de viver a protagonista, Ayla precisou criar mecanismos para se manter centrada. “Tive que ter alguns códigos de defesa para não surtar e conseguir entregar o novo teste. Mas fui bem racional, sabia da responsabilidade. Eu queria muito pegar esse papel.”
Antes de chegar ao cinema, Ayla se formou no palco. Sua trajetória artística começou pela dança, com aulas de balé, teatro de expressão corporal e yoga. “Foi muito um lugar de entender o corpo a partir do corpo mesmo. A partir do músculo, do osso”, explica a artista. O momento de virada veio nas aulas ao lado da coreógrafa Lia Rodrigues em seu centro de formação no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. “Foi quando eu me disse bailarina para o mundo.” Ainda assim, Ayla evita as convenções do balé clássico e se identifica mais com um corpo livre e expressivo: “O corpo que se move, que enverga, que vira de cabeça para baixo e volta — esse é chique pra mim.”
A dança também estará representada em cenas marcantes do filme, que encerrou suas filmagens em junho em Cruzeiro do Sul, no Acre. A personagem é uma releitura contemporânea de Geni, figura imortalizada por Chico Buarque na música Geni e o Zepelim. Para Ayla, dar corpo a essa “Geni moderna”, como descreve, é um gesto político e emocional: “Acho que essa Geni de 2025 vem com meu repertório, minha bagagem. Estou muito feliz, muito honrada. Espero que chegue bem às pessoas. E se não chegar também, tá tudo certo. Vamos disseminar essa lindeza por aí.”
Ayla se destacou por seus papeis em curta-metragens antes de estrelar Geni e o Zepelim. Em 2023, ela foi a protagonista de Pássaro Memória, de Leonardo Martinelli, com exibições em festivais de cinema como Locarno, Toronto e Gramado. Em 2020, dirigiu e atuou no curta A corpa fala, trabalho autoral que já antecipava o tom político e corporal de sua arte. A atriz também integrou o elenco de Santo (2023), Girassóis (2024), e protagonizou, ao lado de Cibelle Rodricco, o curta Defesa Pura (2025), de George Pedrosa, rodado em São Luís, no Maranhão.
‘A agressão chega no meu corpo’
Nascida em 1997, Ayla não se recorda da primeira vez que ouviu Geni e o Zepelim, mas perdeu as contas de quantas vezes revisitou a canção desde que se envolveu com o projeto. O que ficou foi o impacto das vozes à margem — das mães solo às travestis nas esquinas, dos corpos dissidentes invisibilizados. “Chico, quando compôs, estava falando de uma questão social muito presente. O filme vem nesse lugar, de falar de tabus que nem são tabus pra mim, mas que são para a sociedade porque a gente não fala sobre eles. E, se a gente não fala, a gente não trata”, reflete a atriz que dará vida à prostituta marginalizada alvo de pedras, cuspe e bosta.
A atuação, mais do que performance, serviu também como cura. Para Ayla, ouvir e reinterpretar a música é uma forma de ressignificar a violência cotidiana que vive como mulher preta e trans. “Tem uma versão, acho que é de uma travesti em Portugal, que canta pra dar um abraço na Geni, um beijo na Geni. Eu escuto nesse lugar também, de ressignificar. Porque, quando eu saio pra comprar pão, quando vou ao mercado, a agressão chega no meu corpo. Esse é meu diálogo com a música. E com a vida.”
A trajetória até Geni é pavimentada pelas que vieram antes, Ayla faz questão de lembrar. “Sou muito agradecida a todas as travestis que caminharam sobre esse território arenoso. Muitas sofreram muito mais para que eu hoje possa ser ouvida. Carrego minha transancestralidade e também minha ancestralidade, minha avó, minha mãe. E sigo com as minhas irmãs e com os transmasculinos que me rodeiam, abrindo portas para os que ainda virão.” Ela sonha com o dia em que pessoas trans possam interpretar qualquer papel. “Que a gente possa fazer mães, pais, um milhão de possibilidades. Estamos aí. E vai acontecer”, acredita.
Sobre o peso de estrear em um longa-metragem com a assinatura de Anna Muylaert, Ayla responde com sabedoria: “Eu não quero nunca estar pronta. Preparada, eu estou. Mas pronta, não. Porque ter certeza de algo é a maior burrice da vida. Quero construir com os erros, com o que existe aqui dentro.”
Entre dúvidas e certezas, Ayla Gabriela chega às telonas com o que tem de mais valioso: força, coragem, ancestralidade — e um brilho que, com certeza, não passará despercebido. “Eu vou estar belíssima, felicíssima, cheia de mim. Com muito axé, com muita origem, com as minhas do lado. É sobre isso.”
Fonte: Site Oficial Terra